Aparados da Serra!!!
Nos meses de verão, quando nuvens vindas do litoral conseguem romper os penhascos, surge a viração. O choque térmico da massa fria com o calor estacionado na altitude faz com que a névoa se acumule em colunas cada vez mais altas.
Vistas de longe, essas colunas parecem estar em rotação de cima para baixo; de dentro, elas são como uma noite branca, a ponto de impedir que se enxergue além de 2 metros de distância. A viração é uma neblina espessa, quase palpável, que alcança a borda do planalto mas não avança por causa da diferença de temperaturas.
Na região da serra Geral, entre o Rio Grande do Sul e Santa Catarina, ela é capaz de desnortear por completo o viajante desprevenido. Para escapar desse fenômeno climático assustador, explicam os moradores dali, só mesmo a cavalo. Um animal acostumado ao terreno acidentado, com uma sela confortável, forrada com pelego de ovelha. Sobre ela, um sujeito experiente e de boa prosa, um bornal com um farnel, um pala para se proteger da chuva e do vento e, se possível, dois ou três cachorros bons de faro. O vaqueano experiente não sai de casa sem seu facão e seus cães. Certa vez, eu cavalgava em campo aberto na companhia de um experiente vaqueano entre o cânion Monte Negro, no Rio Grande do Sul, e a região do rio Púlpito, em Santa Catarina. Com tempo bom, esse trajeto exige um dia de cavalgada. Mas, de repente, fomos surpreendidos por uma viração forte. Quase cego, perdi completamente o senso de orientação. Em um instante estávamos cavalgando sobre o campo; de repente, à beira de um penhasco; depois, dentro de um banhado. Apesar disso, meu guia e seus cães demonstravam tanta segurança nos rumos tomados que em nenhum momento me senti andando em círculos. A noite avançava quando enfim encontramos um trilho, que nos levou à sede de uma fazenda, onde pedimos pouso. No dia seguinte, o cavaleiro me conta que prefere nunca admitir que perdeu a direção. “Jamais se deve assustar o viajante”, diz. “Mais cedo ou mais tarde, iremos encontrar um caminho para casa.”
No trecho mais extremo de sua topografia, o planalto Norte-Rio-Grandense, que cobre parte considerável da região Sul do Brasil, ganha altitude ao aproximar-se dos litorais gaúcho e catarinense. Então, de repente, acaba. Desaparece. Sua borda plana desnivela-se abruptamente para esculpir um imenso platô, entrecortado por uma sucessão majestosa de abismos, penhascos, grotas e fendas. Vistas de cima, as planuras altas da serra parecem ter sido aparadas a tesoura. De baixo, o observador tem a impressão de que os contrafortes são muralhas de uma gigantesca e intransponível fortaleza.
Esse imenso degrau de 250 quilômetros de extensão e paredões que chegam a quase mil metros de desnível é conhecido como Aparados da Serra. A dificuldade extrema para vencer as escarpas verticais, o frio implacável dos invernos e o isolamento brutal a que foram condenados os primeiros povoadores forjou um modo de vida peculiar, criou histórias, usos e costumes, lendas e mitos que sobrevivem até hoje, quase 300 anos depois do início de sua ocupação.
Antes de os conquistadores europeus chegarem a Aparados, a região era parte de um vasto território disputado por tribos de índios guaranis, coroados e botocudos, que rivalizavam no planalto, e os carijós, que dominavam a faixa litorânea a leste. Povos nômades perambulavam por todas as direções. Os botocudos, senhores das escarpas, transitavam serra abaixo em busca de peixes e mariscos que abundavam nas lagoas costeiras e retornavam à parte alta na entrada do outono para coletar pinhão e caçar.
Os primeiros estrangeiros que se aventuraram a estabelecer uma rota norte-sul, ou seja, um caminho que cruzasse todo o planalto, foram os missionários jesuítas espanhóis, guiados por índios guaranis, no fim do século 17. As trilhas indígenas partiam dos Campos das Missões, a oeste do Rio Grande do Sul, e seguiam em direção aos campos de Curitiba até chegar a Sorocaba, já perto de São Paulo. Hábeis comerciantes, os jesuítas tinham como objetivo o contrabando de muares trazidos de Córdoba, na Argentina. As longas travessias em terras brasileiras justificavam- se pela elevada soma obtida na venda dos animais. A coroa portuguesa fazia vista grossa à prática, pois não mantinha relações comerciais com a Espanha e carecia de transporte de carga.
Não tardou, porém, para que o rei D. João V ordenasse esforços a favor da abertura de um caminho terrestre regular que ligasse a província de São Paulo à vila de Laguna e à Colônia do Santíssimo Sacramento, nas margens do rio da Prata. Coube a Francisco de Souza Faria, sargento-mor da cavalaria portuguesa, a árdua tarefa de abrir a estrada, que precisaria superar as escarpas de Aparados da Serra para marcar uma ligação entre a planície litorânea e a borda do planalto.
Souza Faria partiu de Laguna com seu piloto José Inácio e uma tropa composta de índios, brancos e escravos, um total de 96 pessoas. Em 11 de fevereiro de 1728, depois de 11 meses de aventura, o militar margeou o leito do rio Araranguá em direção a sua cabeceira, galgou a íngreme encosta e alcançou finalmente as terras conhecidas como Vacarias dos Pinhais, no planalto. Depois de aguardar por seis meses a chegada de reforços – metade de sua tropa havia deserdado –, Souza Faria rumou em direção ao interior do Paraná, terminando sua viagem em São Paulo em 2 de fevereiro de 1730. Estava assim criado o Caminho dos Conventos, primeira ligação entre a província de São Paulo e a bacia do rio da Prata. O curto trecho do caminho que galgou as escarpas de Aparados da Serra foi o elo que faltava para a malha viária do Brasil colonial estar completa e poder abastecer de gado, cavalos e muares as minas de Goiás e de Minas Gerais.

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